Síndrome do Imperador – o que é isso?

 

Em nosso último artigo analisamos a importância de a criança lidar com a frustração. Hoje, vamos aprofundar um pouco mais essa questão e pensar no que o psicólogo Leo Fraiman aponta quanto aos riscos que a chamada síndrome do imperador apresenta ao desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes.

Como havia enfatizado, a frustração em graus toleráveis faz parte do processo educacional.  A criança não pode ter tudo o que quer, precisa também saber ouvir nãos, suportar o que a desagrada. Também nós, adultos, precisamos desta aprendizagem assim como os adolescentes. Afinal, a vida não responde sempre de forma positiva ou amigável aos nossos desejos, e ter maturidade emocional é saber aceitar as frustrações e adquirir meios de lidar com elas, seguindo em frente, o que, como já observamos em outros textos, é a base da resiliência.

Muitos estudiosos concordam que essa síndrome, muito comum de ser encontrada nos nossos dias, tem origem no fato de que os pais têm menos tempo de estar com seus filhos devido às exigências profissionais e tentam compensar essa ausência cedendo aos desejos das crianças para não as desagradar ou criar desavenças nos momentos de convivência. Acreditam que têm que “fazê-los felizes a todo custo”, sendo criadas situações indevidas para evitar que as crianças sofram frustrações, julgando que é o melhor a fazer. Acabam por criar crianças teimosas, prepotentes, mandonas, intolerantes, mimadas, e sem empatia, isto é, que não conseguem se colocar no lugar do outro.

A síndrome do imperador é resultado de uma visão distorcida dos pais e outros responsáveis pelas crianças que deixam de estabelecer limites, falta esta que pode gerar graves problemas na sua formação. Como observa Leo Fraiman, quem não sabe viver a frustração corre o risco de entrar em depressão porque é alguém que não sabe ir atrás do que deseja, que não sabe ser grato ao que a vida lhe oferece. O psicólogo enfatiza que é uma atitude narcísica dos pais o que gera tal situação, embora estes não tenham conhecimento disso. É claro que nós sempre fazemos o que consideramos o melhor para nossos filhos, ninguém com clareza dos riscos a que a criança é exposta o faria. Fraiman observa que, sobretudo em um mundo em que as relações estão bastante difíceis, os pais ou outros responsáveis pela criança querem ser amados, querem que os filhos sejam seus amigos, que não se aborreçam com eles. Segundo ele, isto se repete no seu consultório inúmeras vezes: os pais querem resolver as dificuldades, mas não querem que os filhos se zanguem, não querem se indispor com eles.

Muitos pais também foram vítimas de uma educação autoritária e não desejam repetir o que vivenciaram, mantendo um clima de camaradagem com os filhos. Entretanto, é importante compreender que estabelecer limites, normas e rotinas domésticas não significa ser autoritário, mas oferecer às crianças o clima necessário que lhes traga segurança e equilíbrio; é assumir a autoridade de quem se responsabiliza por elas e as ama.

Essas atitudes indevidas dos responsáveis impedem que as crianças ganhem autonomia, e Fraiman observa que tirar a autonomia das crianças, gerando apatia, o seu oposto, é como não desenvolver uma musculatura que dá sustentação ao indivíduo e o aleijar. Observa que a neurociência nos mostra que a área do córtex orbitofrontal, atrás da área ocular, é onde se planejam as ações, se criam relações de causa e efeito, se pensam as consequências, é a sede da força de vontade, do freio moral, sendo uma área que se desenvolve pelo treino. O mestre em psicologia educacional e desenvolvimento pela USP enfatiza, ainda, que se a criança não for treinada a esperar, a criar, a negociar, a ceder e a se frustrar está sendo deformada. Alerta que esta criança se tornará chata, birrenta, gastadeira e neurótica. E correrá o risco de vir a se drogar, uma vez que não desenvolveu sua autonomia, e vai precisar o tempo todo do outro para o que deseja. Não é difícil entender que a dependência aos vícios, funcionará como uma “muleta”.

É fundamental que a criança, o adolescente ou mesmo o adulto aprenda a se sustentar nas próprias pernas, que a relação com o outro não seja a de receber o que se quer, que o outro possa lhe proporcionar relações de troca, relações mais saudáveis, que aprenda a investir no que deseja, a ser persistente, criativo… Frustrações são inevitáveis, fazem parte da vida. Poupar nossas crianças de vivê-las só as deixa mais vulneráveis e frágeis, dando-lhes a falsa impressão de que tudo gira em torno delas, ensinando-as a olharem apenas “para o próprio umbigo”, tirando-lhes a possibilidade de lidar com as dificuldades inerentes à vida.

Ouço queixas de professores que sofrem pressões dos responsáveis para fazerem vista grossa a deslizes de seus filhos; que recebem solicitações de mudar notas e de não punirem ações indevidas; de pais que não aceitam reclamações de atitudes incompatíveis com a sala de aula. Ouço reclamações de que os responsáveis lhes pedem: “Dê um jeito no Joãozinho (ou na Mariazinha). Eu não sei mais o que fazer”.  Imaginem uma professora com vinte ou mais reizinhos e princesinhas para dar conta. Também vejo pais que fazem a tarefa dos filhos; deixam que eles já crescidos, na pré-adolescência, durmam na cama do casal; que tomem as decisões do que a família vai fazer ou deixar de fazer; ou  criam brigas com os coleguinhas que se colocam contrários a seu filho ou o desagradam.

Quem não tem sua autonomia trabalhada, muito mais facilmente deposita nas mãos do outro a sua felicidade, o que pode gerar transtornos inúmeros como os que vemos no notíciário. O rapaz que abandonado pela namorada a agride ou tenta matá-la; aquele(a) que tem reações indevidas e muitas vezes violentas se passa por situações que o incomodam ou se leva uma fechada no trânsito. Com certeza, você que me lê já se lembrou de várias outras situações.

Hoje, ficamos por aqui, mas é importante que nos lembremos de que família e escola têm responsabilidades a serem compartilhadas, mas que professores não podem assumir tarefas que cabem aos pais.

Dúvidas, comentários e sugestões são sempre bem-vindos. Assim que puder, entrarei em contato.

Grande abraço e até a próxima

 

Se quiser  saber mais:

FRAIMAN, Leo. Entrevista: O que é Síndrome do Imperador? Programa Todo Seu em 26 fev.2018  https://www.youtube.com/watch?v=RXHvwnJW9Fs

FRAIMAN, Leo. A síndrome do imperador: Pai empoderados educam melhor. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019

 

Frustração: é mesmo necessária?

 

Este mês, iniciamos uma sequência de textos que nos ajudarão a entender melhor a relação da criança com seu corpo e o movimento, com seu fluxo de energia vital, com seu processo de autorregulação, e aspectos pontuais para a construção da sua personalidade.  Vamos entender um pouco mais sobre como a criança pode estabelecer relações mais equilibradas consigo, com a família, a escola e outros grupos com os quais conviva.

Contrariamente ao que muitos acreditam, não é apenas a mente que assimila conhecimentos. Afetividade, motricidade e cognição estão permanentemente envolvidas na aprendizagem. As tendências naturais para o movimento e para sua expressão são, desde os primeiros anos, prejudicadas pela prioridade dada à formação intelectual em detrimento do desenvolvimento corporal. E assim, não há uma harmonização entre inteligência, sensações e necessidades básicas, criando-se uma desordem psicossomática que se manifesta cada vez com maior frequência e que pode se traduzir por tensões, tiques, perturbações respiratórias, dificuldades de aprendizagem, perda da espontaneidade e ansiedade.

Para maior compreensão do significado da visão da totalidade corpo-mente na educação da criança, vale conhecer um pouquinho da teoria de Wilhelm Reich e suas contribuições no campo da educação e para a Bioexpressão, uma proposta psicomotora e pedagógica com foco na visão integrativa do ser humano.

A teoria reichiana e a educação da criança

Wilhelm Reich foi um dos primeiros a sistematizar a relação entre o corpo e o psiquismo em inícios do século passado. Postulou a unidade funcional entre o psíquico e o somático, concluindo que a mesma energia alimenta estes dois aspectos, gerando a relação e a mútua influência entre atitudes corporais e atitudes psíquicas. Corpo e mente são uma totalidade e interagem todo o tempo. Quando se trabalha o corpo, se trabalha o ser como um todo.

Segundo Reich, apesar de todo anseio natural pela liberdade e pela vivacidade, as crianças contêm seus impulsos quando não há um ambiente natural propício ao desenvolvimento de sua vitalidade sadia. Muitas vezes, a criança sofre pressões para assumir atitudes que contrariam necessidades essenciais que acabam por fazê-la assumir uma atitude rígida e não-natural. Por exemplo: uma criança muda de posição inúmeras vezes ao realizar uma atividade; inclina o corpo, o movimenta de acordo com o que realiza com as mãos, se alonga, se dobra, senta sobre os pés, se levanta; se agita mais quando está alegre ou narra uma aventura, enfim, pensa, sente e age com todo o corpo. Como exigir que fique sentado imóvel durante muito tempo na escola? Isso contraria uma dessas necessidades básicas: o movimento. Vale destacar que o tempo excessivo diante das telas da TV, do celular, tablet ou computador, embora atraiam muito a criança, também trazem malefícios ao desenvolvimento corporal, uma vez que ficam “hipnotizadas” pelas imagens, imóveis, deixando de desenvolver relações espaciais mais equilibradas.

Quando o educador despreza potencialidades infantis, vendo suas necessidades de contato, movimento e brincadeira, apenas como fonte de transgressão ou impedimentos para a aprendizagem, corre-se o risco de realmente se queimarem etapas do desenvolvimento da criança, impedindo-as de desfrutarem a infância em sua plenitude. Para a criança da educação infantil e séries iniciais torna-se evidente a necessidade do trabalho intelectual conectado ao trabalho motor, lúdico e expressivo para que a criança atinja patamares mais elevados no processo de aprendizagem.

As couraças musculares e de caráter

Pais e professores atuam sobre a criança desde os primeiros anos da infância contribuindo, mesmo que sem intenção, para o seu encouraçamento, através da exigência de um aprendizado do autocontrole que vai além do apropriado para a criança: “Uma criança boazinha senta-se quieta”; “Ficar com raiva da mãe é pecado”; “Homem não chora”; “Coma mesmo sem gostar”; “Engula o choro!”, “Não pode se sujar!”. Como analisa Reich, frases como estas, que bem caracterizam um viés da educação, são, de início, rejeitadas pelas crianças; aos poucos vão sendo relutantemente aceitas, assimiladas e, por fim, exercitadas.  Já ouvi narrativas de estagiárias sobre professoras que serviam pratos muito cheios para alunos e os obrigavam a comer tudo, a comida se misturando às lágrimas. Também de professoras que não aceitavam a criatividade e curiosidade tão naturais da criança, obrigando-as a copiar modelos ou calar perguntas (Felizmente, isso não era a regra; havia situações muito positivas).

A criança tem a “espinha da alma” dobrada, diz Reich; suas vontades não são consideradas, a vida interior e os sonhos são abafados, a espontaneidade contida, a expressão amordaçada. E a criatividade também. Chega um momento em que algumas crenças sem fundamento são assumidas e a criança que se tornou adulto repete para seu filho: “Homem não chora!”. E em momentos de intensa dor não consegue sentir o alívio da dor através das lágrimas devido às couraças criadas.

As couraças musculares, marcas que se gravam no corpo, foram assim denominadas por Reich por representarem um mecanismo de defesa, um escudo de proteção, que surge da necessidade de o ser humano suportar os golpes recebidos ao longo da vida, desde a infância. São um enrijecimento crônico dos músculos que, para proteger o indivíduo de experiências traumatizantes e que podem provocar desequilíbrios, bloqueiam a energia corporal, contendo as emoções. As emoções fortemente sentidas e mal trabalhadas geram tensões que se registram em alguma parte do corpo, bloqueando o fluxo normal das emoções. Os bloqueios criados fazem com que a pessoa tenha dificuldade (ou impossibilidade) de expressar sentimentos comuns como raiva, medo ou prazer. As couraças musculares impedem as crianças (e os futuros adultos) de sentirem seu corpo, de o respeitarem e de aprenderem a ouvi-lo, pois são criados padrões automáticos e inconscientes de resposta.

Não se trata, de forma alguma, de a criança deixar de ser orientada e corrigida, de ter limites impostos, isso faz parte do processo de educar que pais e professores têm a seu cargo, trata-se de ser necessário que suas dificuldades e especificidades, ou seja, de que sua forma de ser e necessidades sejam respeitadas. Uns são mais lentos, outros mais rápidos, há os extrovertidos e os introvertidos, os mais sensíveis ou menos, os mais quietos e os mais agitados, enfim, cada criança tem sua individualidade, sua forma de sentir, de pensar e de agir.

É importante que os sentimentos da criança sejam reconhecidos; que ela seja estimulada a vencer desafios e superar dificuldades, mas sem críticas e castigos duros se ainda não conseguiu chegar lá; elogios pontuais são sempre bem vindos, e os erros podem ser mostrados com amorosidade. E, também, dar-lhes autonomia de escolhas sempre que possível e quando não prejudicar a disciplina necessária. É claro que não podemos deixar que tenha atitudes como fazer birra, se não tem um desejo atendido, pois, lidar com a frustração faz parte do crescimento, mas podemos sim admitir que ela tem o direito de ficar zangada e de dizer ou demonstrar isso, mas não podemos permitir que morda a coleguinha ou chute a professora, que jogue objetos ou grite descontroladamente. As emoções precisam ser trabalhadas e educadas também.

O que basicamente diferencia a criança saudável daquela que apresenta bloqueios energéticos, isto é, os encouraçamentos, é a forma como lidam com as situações; a criança saudável, ao enfrentar circunstâncias difíceis, sai sem maiores danos da condição problemática, ao passo que a que já apresenta encouraçamentos permanece na situação patológica. Problemas e bloqueios vão sempre existir, entretanto, pais e educadores podem contribuir para minimizá-los, para evitar que se cronifiquem e para que as crianças aprendam a lidar com suas emoções.

Outro ponto a considerar, é que tentando evitar a dor das emoções indesejáveis ou insuportáveis, nos fechamos na insensibilidade, nos fechando, também, para sentimentos prazerosos, para o afeto; acabamos por nos fechar ao outro e à própria vida. O isolamento cria novos hábitos, imperceptivelmente, a espontaneidade e a receptividade vão-se perdendo aos poucos e cada vez se torna mais árduo ultrapassar as barreiras criadas, fazer “contato”. O diálogo vai-se tornando cada vez mais difícil.

Para Reich, a frustração desde que em graus toleráveis faz parte do processo educacional.  A criança não pode ter tudo o que quer, precisa também saber ouvir nãos. Também nós, adultos, precisamos desta aprendizagem. Afinal, a vida não atende a todos os nossos desejos, e maturidade emocional é saber aceitar isso e ter os meios para seguir em frente. Esta é a base da resiliência.

Entretanto, quando o ambiente escolar e/ou familiar é cercado por uma atmosfera de frustração constante, forma-se na criança um caráter inibido e sem autonomia, o que é prejudicial para seu desenvolvimento. Entretanto, se o educador não tem autoridade, assumindo uma atitude muito permissiva, criam-se crianças sem limites. E todos nós sabemos da importância de estabelecer limites para a vida social, familiar e escolar. Relações interpessoais saudáveis exigem que existam normas de convivência.

De acordo com Reich, uma prática educativa saudável seria aquela em que o professor e/ou os pais colocam limites, algumas regras, que até podem causar descontentamentos, mas que ajudam no desenvolvimento infantil, sem, no entanto, causar inibição através de repressões, críticas e censuras excessivas, o que gera o encouraçamento. Educar com amor e autoridade ao mesmo tempo seria a medida ideal para a formação dos nossos pequenos.

Hoje, ficamos por aqui. No próximo artigo, vamos pensar possibilidades para evitar que as couraças se cronifiquem e analisar alguns pontos que aproximam Wallon, um dos grandes estudiosos da criança, da teoria reichiana.

Dúvidas, sugestões ou comentários? Deixe seu recadinho que responderei logo que possível.

Grande abraço e até lá

Poder e magia da música para a criança

 

O ritmo está presente em toda parte – nas batidas do coração, no fluxo respiratório; nos processos biológicos, nos fenômenos da natureza. Há ritmo no bater de asas dos pássaros, no vaivém das ondas do mar, nas fases da lua, na cadência dos passos, das palavras, no movimento das máquinas. Como afirma o musicoterapeuta Carlos Fregtman, tudo se manifesta através do ritmo, que é a pulsação vital. Estamos envoltos em uma poderosa sonosfera e não ficamos imunes a ela, pois não temos como desligar nossa audição como fazemos com a visão fechando os olhos.

Pendurados no berço, há caixinhas e objetos que atraem o bebê com musiquinhas e sons suaves, são muitas as cantigas e sons presentes nos brinquedos sonoros, na tevê e nos computadores que atraem a atenção imediata das crianças, e que com o tempo mais e mais exercem atração sobre elas. Primeiro balbuciam, depois, com a aprendizagem da linguagem passam a cantar, mexendo o corpinho, batendo palmas, se entregando ao prazer que a música lhes proporciona.

A música é uma linguagem tão valiosa quanto a linguagem verbal, ou seja, a linguagem conceitual. Seu poder terapêutico e pedagógico é ilimitado, pois ela se integra a pensamentos, sentimentos e percepções sensoriais nos níveis mais profundos da personalidade. Atividades com música como jogos cantados e brincadeiras de roda são formas de a criança se expressar e de adquirir conhecimentos adequados à sua faixa etária. Crianças com necessidades especiais muito se beneficiam com a música, exatamente pelo poder da música de atuar além do verbalizável e de superar resistências, tocando corpo e mente, atuando sobre a sensibilidade que é uma forte marca dessas crianças.

A educação musical na escola não se destina, assim como as outras expressões da Arte, a formar possíveis artistas, mas, sim, a proporcionar uma formação integral de nossos pequenos, trabalhando a corporeidade, ou seja, integrando cognição, afetividade, motricidade e relações sociais. A linguagem musical é um dos meios de desenvolver a expressão criativa e o autoconhecimento, contribuindo muito para as relações interpessoais. Como vimos no texto anterior, uma vez que trabalha as inteligências inter e intrapessoal (autoconhecimento e relações pessoais) estimula a educação emocional.

Também é um meio importante de desenvolver o equilíbrio. Fregtman afirma que tanto os processos corporais voluntários como os involuntários são afetados pelos sons. A música provoca mudanças biológicas – provoca alteração no pulso, na respiração e na pressão sanguínea; relaxa, diminui a fadiga muscular, amplia a capacidade metabólica. Trabalha a sensibilidade, facilitando o acesso a outras formas de estímulo e percepção. O ouvido está diretamente conectado com o sentido do equilíbrio e da direção, do qual depende o controle dos movimentos.

A prática comum em boa parte de nossas escolas de oferecer tudo pronto rouba muito do prazer da aprendizagem – o prazer de experimentar, de vivenciar, de sentir. Construir um instrumento por mais simples que seja e fazê-lo emitir sons é uma rica e prazerosa experiência que merece ser aproveitada.

Muitos são os materiais possíveis: garrafinhas de água e pauzinho de sorvete se transformam em reco-reco que podem sonorizar o barulho de um trem (rápido ou lento, parando na estação) ou acompanhar uma cantiga; tambores e outros instrumentos de percussão surgem magicamente de latas e caixas de papelão de tamanhos diferentes; como baquetas podem ser usados palitos de churrascos com rolhas nas pontas; potinhos e latinhas se transformam em chocalhos. Ainda podem ser usados guizos, sinos e tantos outros objetos que vamos descobrindo aos poucos. A web lhe trará muitas outras ideias. Este material pode ainda ser decorado, ficando com o jeitinho do seu dono.

Sendo a música uma capacidade inerente ao ser humano, todos nós podemos descobrir meios de expressão sonora, seja com o corpo, com a voz ou com um instrumento musical construído com as próprias mãos ou mesmo pronto. É importante que o adulto compartilhe com a criança essas experiências ricas e prazerosas. A improvisação abre espaços incríveis. Os sons são excelentes detonadores da expressão criativa e na contação de histórias; e crianças adoram sons (e histórias também).

Emoção e criação são movimentos pessoais que não fluem através de movimentos alheios, estranhos ou sem sentido; não podem ser moldados por parâmetros massificadores. É importante que a criança (e o adulto também) tenha seus momentos de expressão autêntica, natural, emocional, criadora. Não se pode esperar que todos reajam e se manifestem da mesma forma. Mais que isso, não se deve. Estimular o lugar comum, a uniformidade, é estimular a alienação e o conformismo.

A música possibilita ainda ao educador trabalhar outros aspectos em sala de aula: a atenção, a observação e a concentração; possibilita criar variados ritmos, sons, letras e movimentos; auxilia o desenvolvimento integral do ser (desenvolvendo cognição, motricidade e afetividade); possibilita o conhecimento de ritmos e costumes de diferentes culturas e etnias, como da cultura indígena ou africana.

A música na escola pode estar presente em múltiplas situações e atividades. Pode ser o fundo musical para inspirar uma pintura (mais suave ou mais rápida), um desenho ou qualquer outra atividade através da qual a criança se expresse; pode marcar movimentos do corpo no espaço; pode estar no pátio nas cantigas de roda, nos jogos dramáticos e em inúmeras outras situações escolares.

Trabalhar a música na escola (e em casa também) traz possibilidades múltiplas e bastante significativas para professores que atuam na Educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental, embora não deva ser desconsiderada em outros níveis e modalidades de ensino.

Desta vez, ficamos por aqui. No próximo post, vamos continuar com a música e ver mais de seus grandes poderes. Incluindo o desenvolvimento da neuroplasticidade, do estímulo à aprendizagem e domínio de tempo-espaço.

Seus comentários, perguntas e sugestões são sempre bem-vindos. Deixe-os no nosso site, assim que puder responderei.

A fotos foram retiradas da web.

 

Tempo de ser criança e ser feliz – o movimento

O tempo da infância, mesmo o das crianças pequenas, no momento em que vivemos, tem se caracterizado por muitas pressões e cobranças, considerando-se que há uma grande preocupação dos educadores – tanto na família quanto na escola, em preparar a criança para que tenha sucesso no futuro, sendo bem sucedida no mercado de trabalho. E o presente? É vivido e sentido com a intensidade que merece?

Marcha soldadoRespeitar o tempo de ser criança de nossos pequenos é um dos nossos grandes desafios em um mundo corrido e dominado pela tecnologia. Este cuidado é fundamental se quisermos preservar uma educação humanizadora. O processo de desenvolvimento da criança não pode ser acelerado ou ter etapas suprimidas. E cada uma tem seu próprio tempo, suas próprias características.

As atividades livres, as brincadeiras, as expressões espontâneas da infância acabam perdendo seu espaço-tempo. Em nome de um futuro mais promissor, o aqui-agora é deixado de lado, esmagado por muitas obrigações que sobrecarregam as agendas infantis e atropelam esta fase tão importante da vida que deixa marcas pela existência afora.

A primeira infância é um tempo em que há processos de desenvolvimento intensos e significativos como o amadurecimento cerebral, o desenvolvimento da linguagem, das emoções, da capacidade de aprender, das relações sociais, … E a criança necessita interagir com os desafios e possibilidades do mundo que a cerca, da sua realidade e, não, passar horas em contato com o mundo virtual, paralisada à frente da tela da tv, do celular ou do computador.

Quanto melhores forem as condições de desenvolvimento nessa etapa, mais chances terá a criança de se tornar um jovem e, posteriormente, um adulto mais equilibrado, com maiores possibilidades de desenvolver seus potenciais. A infância é um tempo de ser criança.

A criança e o movimento, expressão de vida

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É essencial que pais e professores da educação infantil possibilitem às crianças oportunidades de se movimentarem de forma espontânea, mais livre e que estimulem os cinco sentidos: audição, visão, paladar, tato e olfato de forma a experimentarem novas sensações, fazerem descobertas, atuarem no mundo que as envolve, de forma a serem mobilizadas corporalmente para a aprendizagem.

O movimento é muito mais que um deslocar-se no espaço ou uma forma de comunicação. Henri Wallon, conhecido estudioso da criança, aponta que o ato motor tem um importante papel na afetividade e na cognição infantil. Por volta do primeiro ano, com os primeiros passos, a criança explora de forma mais intensa o mundo à sua volta. Antes mesmo de falar, os gestos intencionais já nos mostram os desejos e respostas da criança: apontando o que quer, nos levando até o que deseja, interagindo conosco, mostrando que entende o que perguntamos ou falamos.

P1020691O movimento é fundamental para que a criança descubra o mundo, tendo dele consciência. É através do movimento que ela trava relações consigo mesma, com o outro e com o seu entorno. Ela conhece e experimenta o mundo através de seu corpo, é este que permite a aprendizagem. Pegar, sentir na pele, ouvir, discriminar ruídos, ver, experimentar cheiros diferentes, texturas variadas, novos sabores. Novas vozes, novas emoções, experiências de afetos, … e assim o mundo vai se mostrando, sendo descoberto, vivido e sentido. Assim vai aprendendo sobre limites, respeito e liberdade.

A primeira infância tem como características marcantes a necessidade de movimento, a curiosidade e a interatividade, o que precisa ser considerado por quem lhe oferece atividades, organizando-as de maneira mais dinâmica para que a criança pense, sinta e aja com todo o corpo. Um problema comum da escola é a proposta de movimentos automatizados e repetitivos que priva a criança de criar seus próprios movimentos, estimulando-as à cópia e à repetição.

Os estudos da teoria walloniana mostram que até se aproximar dos seis anos, a criança ainda não consegue focar sua atenção e ficar em uma mesma posição por muito tempo. Por isso, para que a escola possa exercer seu papel de trabalhar o desenvolvimento da criança, a educação infantil não deve exigir que a criança fique imobilizada atrás de uma mesinha, o que contraria suas necessidades vitais. Ela precisa ser estimulada a usar sua imaginação, seu corpo, sua criatividade, sua expressividade. Que possa dançar, brincar, interagir, cantar, enfim, aprender e ter seu desenvolvimento estimulado com prazer e alegria.

É por volta dos seis/sete anos de idade que ocorre o fortalecimento da cognição, podendo a criança ter maior controle sobre seus movimentos e mais autonomia para uma aprendizagem formal. Compreender as fases do desenvolvimento infantil propicia relações mais equilibradas na sala de aula e menor desgaste dos educadores. Também permite melhor compreensão das atitudes infantis, de que não é de castigo que a criança necessita quando não consegue ficar parada por muito tempo, muito menos de remédios que a façam perder sua natural espontaneidade.

Com um trecho do significativo e sensível poema de Pedro Bandeira, Vai já pra dentro menino!, encerro nosso texto desta quinzena. A poesia o complementa lindamente.

[…]

Se eu me fecho lá em casa,

Numa tarde de calor,

Como eu vou ver uma abelha

A catar pólen na flor?

Como eu vou saber da chuva

Se eu nunca me molhar?

Como eu vou sentir o sol,

se eu nunca me queimar?

Como eu vou saber da terra,

Se eu nunca me sujar?

Como eu vou saber das gentes,

Sem aprender a gostar?

Quero ver com os meus olhos,

Quero a vida até o fundo,

Quero ter barro nos pés,

Eu quero aprender o mundo!

Suas sugestões, comentários e perguntas são sempre muito bem-vindos. Deixe-os no espaço abaixo. Responderei assim que possível.

Um grande abraço e até a próxima.

Fotos de meu arquivo pessoal.

 

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Estica, dobra, pula, roda, sobe e desce… Cansou? Que nada!!!!

Nenhuma criatura jovem pode conservar seu corpo ou sua voz sossegados; elas estão continuamente tentando produzir movimentos e ruídos. Pulam e saltitam, dançam e fazem travessuras como se estivessem sempre em júbilo, e voltam a emitir gritos de todos os tipos (Platão).

Pois é, já na Antiguidade, o sábio grego observava que criança não vive sem movimento. E olhe que, naquela época, criança ainda não tinha voz (e nem vez). Não foram poucos os estudiosos da infância que reafirmaram isso, analisando sua importância para o desenvolvimento infantil. Mas por que será que este controle do corpo ainda é tão persistente? Por que ainda se acredita que para aprender é necessário estar sentado eCaneta e régua? Não!! Um avião quieto? Pesquisas apontam claramente alguns pontos mais evidentes, embora não sejam os únicos:

Primeiro porque a dinamicidade natural dos corpos das crianças pode ser controlada com mais facilidade se estas estiverem sentadas e contidas pelas mesinhas, o que assegura a autoridade do professor, pelo menos em tese, livrando-o do que é o terror da maioria: a bagunça. Mas será mesmo que movimento é a mesma coisa que confusão e gritaria? Que sempre causa desordem? E, infelizmente, isso se mostra também em turmas de Educação Infantil em que o movimento é essencial para o desenvolvimento saudável da criança. Mas a criança, quando não pode se mover, sempre encontra um meio de burlar este controle, como mostra a foto em que uma caneta e uma régua se transformam em um avião que voa escondido.

Segundo porque se tem a ideia absolutamente errônea de que o movimento atrapalha a aprendizagem da criança, tirando-lhe a atenção e a concentração. Entretanto os estudos de Henry Wallon apontam a relação íntima entre inteligência e movimento, e a “incapacidade” de a criança mais nova ficar quieta por um tempo mais longo. Na verdade, ela não tem, ainda, condições de desenvolvimento para isso.

Terceiro porque os professores, por considerarem que é o mais adequado e/ou devido a lhes trazer maior segurança, repetem a fórmula com que foram escolarizados, repetem o já conhecido.

É importante analisar essa questão por outro ponto de vista: não seria a excessiva falta de movimento, esta expressão necessária da criança que descobre o mundo e em quem vibra curiosidade e energia, que gera a falta de concentração e de atenção? A agitação excessiva não seria fruto dessa energia, que parece inesgotável, que está contida e que busca se expressar e que precisa ser gasta a todo custo? Além do mais, estabelecer regras e limites faz parte da brincadeira. Ou não faz?

O RCNEI – Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, que tem o movimento como um dos eixos considerados fundamentais ao desenvolvimento infantil, alerta quanto às rígidas restrições posturais que buscam suprimir a mobilidade das crianças, impondo-lhes longos períodos em que não devem se mover, sendo qualquer deslocamento ou gesto, qualquer mudança de posição vistos como desordem ou indisciplina. Mas as transgressões são inevitáveis, pois o corpo precisa se mover. E quando falo em movimento não me refiro apenas às brincadeiras ou jogos Resistênciaque exigem espaço mais amplo como jogar bola, brincar de pique, pular corda ou amarelinha, mas também àquelas que se adequam à sala de aula como passa-anel, jogos cantados, jogos teatrais ou as outras possibilidades de que falamos em artigos anteriores. Também a dimensão subjetiva do movimento precisa estar presente de forma que se explore a comunicação gestual, a percepção de emoções, a expressão de sentimentos (o que será aprofundado em outro artigo).

É fundamental que a educação escolar incorpore, em seu processo pedagógico, o desenvolvimento de atividades que permitam à criança conhecer o mundo,  conhecer   a   si   própria   como   sujeito   com   condições   de   atuar   neste   mundo   e   de transformá-lo. E o autoconhecimento, processo que dura a vida toda e que pode (e deve) se iniciar na infância, implica, inicialmente, o conhecimento do próprio corpo, dos sentidos e de sua estimulação, de diferentes linguagens expressivas como a corporal ou a musical, da identificação gradual daquilo que é sentido. Nosso corpo traz o mundo para nós e também registra nossas múltiplas experiências: a alegria, a confiança, a perda, a dor, o medo, o prazer… E isso deve fazer parte da aprendizagem, isso precisa ser, também, trabalhado. A aprendizagem emocional é tão importante quanto a intelectual e a motora. Afinal, somos uma totalidade, lembra?

O mundo real, a fantasia, a ludicidade e o movimento se mesclam na infância em uma tessitura de muitas cores e de muitas expressões. Aos poucos, a criança começa a perceber a realidade de forma mais crítica e objetiva, a cognição se sobrepõe à emoção e ao movimento, o que ocorre por volta dos seis anos de idade, quando tem início o ensino fundamental que não deve, também, tirar a ludicidade da vida da criança. E, por isso reitero a importância essencial do movimento e do lúdico.

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A dissociação entre o real e o lúdico não deve ser impingida à criança a título de fazê-la crescer “a ferro e fogo”. Interferir neste processo é uma forma de violência que pode lhe trazer muitos danos (É como tentar liberar a borboleta de seu casulo antes do tempo. Ela não conseguirá voar). Não é à toa, como discutimos anteriormente, que a brincadeira é fundamental para a elaboração de situações que a criança ainda não consegue entender. Não podemos esquecer que a criança não pensa, sente ou age como nós, adultos (embora nós ajamos como criança em determinadas situações, não é mesmo?).

As atividades da criança devem ter sentido para ela, devem expressar vida, envolvê-la, não serem mecânicas, ou seja, devem ser lúdicas e criativas. Caso contrário se cria dispersão e desinteresse. Crianças (e mesmo jovens e adultos) que se envolvem em atividades lúdicas e criativas entram em maior contato consigo, o que lhes abre portas para descobrir o mundo, lançar-lhe um outro olhar, criar novas possibilidades de construir saídas, conhecimento e compreender a realidade.

Educar não é homogeneizar, igualar, produzir em massa, mas estimular as singularidades e potencialidades de cada ser; não é dar respostas prontas, mas ensinar a buscá-las; educar é trabalhar a corporeidade, considerando o sentir-pensar-agir. Educar é humanizar.

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As fotos foram retiradas das dissertações de Mônica Cristina Neto e Patrícia Vieira Bonfim por mim orientadas. Com Patrícia escrevi o capítulo cujo link está ao final para quem desejar aprofundar mais o assunto.

Depois de tanto movimento, no próximo texto, vamos pensar possibilidades de levar às crianças atividades que as ajudem a expressarem suas emoções e a lidar melhor com elas.

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Até a próxima!!

https://books.google.com.br/books?id=MV126jYry7IC&pg=PA88&lpg=PA88&dq=corporeidade+lucia+helena+pena+pereira&source=bl&ots=VtyD8FPKlb&sig=ER2_PQHGEz_Px3Zo17Qec5B6MJw&hl=pt-BR&sa=X&ved=0ahUKEwiCz5W9gJXOAhVEj5AKHRskCz4Q6AEIRzAG#v=onepage&q=corporeidade%20lucia%20helena%20pena%20pereira&f=false