Ludicidade, arte e resiliência: de mãos dadas na pandemia

 

Este momento de pandemia e distanciamento social nos traz muitos desafios, e a criança não está imune a eles, muito pelo contrário. Irritabilidade, sono irregular, agitação são algumas das alterações facilmente observadas. A vida fechada num apartamento e sem o contato com avós, tios, primos ou amiguinhos da escola pode se transformar em viver dentro de uma panela de pressão, especialmente se aqueles que convivem com a criança são vítimas de mudanças de humor, de inseguranças, medos, ansiedade, o que, como observava Henri Wallon, um dos grandes estudiosos da infância, facilmente contagia os pequenos. Nesta crise vivida em que muitas podem ser as dificuldades – materiais, emocionais e físicas até pela falta do movimento e de uma vida mais regular – se torna necessário estimular nossa capacidade resiliente.

A resiliência é a capacidade de lidar com dificuldades sem se deixar arrastar por elas, sem desmoronar ou se afetar a ponto de perder o controle. Como seres humanos vulneráveis que somos, os problemas nos abalam sim, mas a capacidade resiliente, tão importante em meio a crises, nos permite como diz a letra da canção “levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima”.

Cabe enfatizar que a resiliência não é inata, não nascemos ou não resilientes, embora a vivência de cada um possa gerar maior ou menor estrutura resiliente, estando vinculada ao desenvolvimento e crescimento humanos. Outro ponto importante e muito positivo é o fato de ser uma capacidade que pode ser trabalhada, tanto individualmente quanto em grupo, o que significa que a família e a escola podem ser espaços propícios para isso. Mas como, vocês podem me perguntar, se estamos sem aulas presenciais? Falaremos disso já, já.

O celular ou o notebook podem propiciar o contato das crianças com os avós, tios, primos e amiguinhos através de vídeos. Esta é uma forma de manter vínculos importantes para a criança. (Foto de Andrea Piacquadio -Pexels)

A primeira questão fundamental a se levar em conta (o que as pesquisas que desenvolvi ao longo de alguns anos me ajudaram a confirmar) é que a resiliência se relaciona com a corporeidade, que envolve pensamentos, sentimentos e ações (atitudes/comportamentos) e as relações estabelecidas com o outro e com o meio ambiente. Não foi à toa que quando iniciei este blog em 2016, o primeiro tema escolhido foi corporeidade, isto é, uma visão integrada do ser humano, temática a que sempre retorno pela sua importância e relação com vários aspectos do desenvolvimento infantil. O distanciamento do ser humano de sua corporeidade explica algumas dificuldades em lidar com os problemas que surgem no dia a dia, gerando muita ansiedade e angústia pela dificuldade de a pessoa entender as próprias emoções, de lidar com elas e de expressá-las.

José Tavares, estudioso de educação e resiliência, considera que todos nós deveríamos possuir características resilientes tais como vínculos afetivos, flexibilidade, empatia, criatividade, inteligência, autonomia, liberdade, autenticidade, autoconfiança, sendo capazes de enfrentar situações adversas mantendo nosso equilíbrio. Entretanto, o ritmo de vida acelerado e competitivo de nossos dias faz com que as pessoas não se percebam, vivam ligadas no piloto automático e em permanente estresse, o que se intensificou muito com a Covid 19. E, não tenham dúvida de que crianças também se estressam e muitos sintomas daí decorrem. Afinal, elas são extremamente sensíveis ao que as cerca. Assim, as características apontadas por Tavares como “naturalmente resilientes” vão se perdendo, ou mesmo, sendo abafadas. E nesta fase, com a pandemia que vivemos, isso pode se agravar e muito. A flexibilidade dá lugar à rigidez, a autenticidade e a criatividade abrem espaço ao senso comum e à repetição, e a autoestima e autoconfiança vão se perdendo.

Então, como podemos instigar a criança a ter maior contato consigo mesma e ter essas características estimuladas? Como podemos contribuir objetivamente para desenvolver sua capacidade resiliente?

Manter vínculos afetivos é fundamental para estimular a capacidade resiliente, inclusive aqueles que possibilitam o toque carinhoso e o abraço. (foto de Elly Farrytale – Pexels)

Vamos considerar, aqui, aspectos que podem ser facilmente compreendidos e vivenciados por pais e professores. O primeiro a considerar são os vínculos afetivos. O ser humano é um ser social, por isso necessita do contato com o outro para a sua formação como indivíduo. Sentir-se amada e protegida traz segurança para a criança, e isso inclui o estabelecimento de regras e limites e não apenas fazer o que ela deseja. A convivência com os avós, a família e os amiguinhos deve ser sempre estimulada. Neste momento, contatos através de vídeos ou até por telefone são muito importantes.

Embora não tenhamos ainda aulas presenciais, as aulas remotas devem criar possibilidades para que a criança manifeste seus sentimentos o que pode ocorrer pela expressão oral ou através de desenhos, histórias em que se podem trabalhar emoções, criação de personagens e músicas com movimentos. A presença da professora e dos coleguinhas, embora à distância, certamente será fundamental para a criança.

O segundo ponto importante são as brincadeiras, o prazer e a alegria. Alguns autores consideram que o humor (o bom humor, é claro!) é um dos pilares da resiliência. Acredito que nosso povo passe por tantas sem desmoronar por seu senso de humor tão aguçado. Assim, pais ou professores, possibilitem situações em que haja espaço para o riso, a leveza, a alegria. Deixe que as crianças rolem no chão e se movimentem de acordo com as possibilidades; deixe que se sujem na areia, que tenham contato com as plantas, com a água, com o sol e com espaços abertos, se houver esta possibilidade. O ato motor está relacionado não só ao mundo físico, mas também à afetividade e à cognição, não é simplesmente o deslocamento no espaço físico, ele é repleto de expressividade, reflete muito do que sentimos e pensamos.

As brincadeiras de faz de conta não podem ficar de fora, são uma oportunidade ímpar para as crianças trabalharem suas emoções, processarem suas tristezas, aquilo que ainda não conseguem entender bem. A criança, através deste tipo de brincadeira, pode transferir para os personagens que cria suas ansiedades, angústias, desencantos e dúvidas e olhar para eles de outra maneira. Panos coloridos e caixas de vários tamanhos forradas podem se transformar naquilo que se desejar: de bercinho de boneca a carro de corrida, e (quem sabe?) em um barco, uma tenda, ou um tambor. Tais atividades trabalham a autoexpressão, criatividade, flexibilidade, empatia, liberdade, espontaneidade e autonomia, características resilientes.

O terceiro ponto são as atividades artísticas, formas incríveis estimular autoexpressão, criatividade e todos os outros aspectos citados por Tavares. As atividades de artes na educação infantil devem proporcionar momentos prazerosos, que provoquem na criança o desejo da descoberta, a flexibilidade manual, a destreza, a criatividade, a produção e a reflexão, nas quais podem ser explorados diversos materiais. Não são recomendáveis o colorido de figuras xerocadas ou a cópia de modelos, uma vez que podam a expressão pessoal. Se a criança quiser desenhar um super-herói, estimule-a a criar a situação em que ele se encontra ou a fazer o seu próprio desenho. Geralmente, elas adoram livros de colorir e não há problema em usá-los se desejam. Mas não deixe de estimular um espaço de autonomia e criatividade. Deixe que dancem, que representem personagens dos livros infantis ou que criarem.

Ler, criar personagens, dramatizá-los o que pode ser orientado pelos pais ou professores mesmo que online, é essencial para trabalhar a sensibilidade das crianças. (Foto de Cottombro – Pexels)

Brincadeiras e jogos, pintura e colagem, cantigas, jogos musicais e teatrais, contação de histórias, dança e muito mais são atividades lúdicas e permitem que a corporeidade da criança seja trabalhada.

Quanto mais trabalharmos a relação com nossa corporeidade, compreendendo a indissociabilidade das dimensões humanas – motora, cognitiva, afetiva, espiritual e social, mais chances teremos de desenvolver nossa capacidade resiliente. Raiva, tristeza e frustrações fazem parte da vida do ser humano, e poder reconhecê-las e expressá-las de forma adequada pode contribuir para buscarmos melhores maneiras de enfrentar os problemas de forma mais equilibrada, com mais flexibilidade.

As boas experiências vividas com regularidade na infância deixam marcas indeléveis que ficam registradas no corpo e no eu mais profundo, e que estarão disponíveis quando o sofrimento bater à sua porta. Essa forma de nutrição da alma permite que novas forças sejam acessadas quando se fizerem necessárias.

Uma criança que tem uma infância feliz, que teve (tem) o apoio de quem cuida dela, seja pai, mãe ou outro responsável, que se sabe amada e respeitada terá chances maiores de se tornar um adulto mais equilibrado, mais feliz e mais resiliente.

Se tiver alguma dúvida em relação ao que foi apresentado, se algo não ficou claro, se tiver sugestões ou quiser fazer comentários, entre em contato conosco através do espaço abaixo no próprio site. Sua participação é sempre muito bem-vinda e significativa.

Criança faz arte?

Inegavelmente, criança faz arte: não podemos tirar os olhos delas que já estão inventando alguma estripulia. Lembro-me de minha avó: “Onde se meteu essa menina? Deve estar aprontando alguma coisa…” E eu estava mesmo.

Mas não é deste tipo de arte que estou falando agora, falo das atividades artísticas, que são fundamentais para o desenvolvimento da criança, muito mais importantes do que comumente se considera. Infelizmente, já ouvi alguns pais dizerem se referindo ao material para os trabalhinhos de arte: “Só serve para fazer sujeira e aumentar o custo do material escolar!”. Este é um grande engano que precisamos corrigir, embora concorde que, muitas vezes, há exagero nos pedidos das listas. Mas isso é outra história.

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É claro que a relação que se estabelece entre a criança ou o adulto e a arte é diversa. João Francisco Duarte-Júnior, conhecido estudioso de Arte, observa que o ponto principal da diferença é que o adulto é capaz de fruir, ou seja, de apreciar o objeto da arte: uma composição musical, um balé, pinturas, esculturas, etc. Já para a criança, a arte se constitui em um fazer, em uma atividade que podemos qualificar como artística. Ela é importante por ser uma ação significativa e não por proporcionar-lhe uma experiência estética como ocorre com o adulto. Devemos considerar, assim, que o importante não é o produto, mas o processo criador da criança, a sua atividade expressiva.

Embora a relação da criança com a arte seja a de um fazer e não, ainda, a de criar de acordo com padrões estéticos, a atividade artística, como enfatiza Duarte Júnior, é um fator que não pode ser desconsiderado para que sua consciência estética se desenvolva. As atividades artísticas trazem para os pequenos a possibilidade de que se crie uma postura mais harmoniosa e equilibrada diante do mundo, integrando sentimentos, razão e imaginação, e exercitando sua habilidade de discriminar e fazer escolhas, sua capacidade crítica.

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Embora possamos elencar muitos ganhos obtidos pela criança ao vivenciar tais atividades como o estímulo à autoestima, à autonomia e à criatividade, um muito importante nos salta aos olhos: elas possibilitam a vivência lúdica, a entrega total a seu fazer. As atividades expressivas como as artísticas e as lúdicas contribuem para que se trabalhe a integralidade do ser, estimulando o intelecto, as emoções e a motricidade, além das relações com o meio e as pessoas. Elas trabalham a corporeidade de que já falamos muitas outras vezes.

Ao estimular a criança a desenhar, contar ou recontar uma história, manipular lápis de cor, giz de cera, pinceis, tinta guache e aquarela, incentivando-a a expressar suas emoções, estamos ajudando-a a se relacionar com o mundo a sua volta e a desenvolver a autocompreensão. Da mesma forma, propiciar-lhe situações em que possa perceber diferentes ritmos, cantar músicas variadas, apreciar imagens, ajudando-a a fazer sua leitura, perceber texturas e formas dos objetos é um modo de lhe oferecer recursos para a leitura de seu mundo.

Viktor Lowenfeld, estudioso de arte e psicologia, aponta o papel vital que a arte desempenha na educação infantil. Segundo enfatiza, ao fazer desenhos, pinturas ou outras formas de construção, a criança realiza um processo complexo, pois une elementos variados de sua experiência para dar vida a um significado novo de uma totalidade. A criança une o que viu, o que sentiu, o que pensou e dá uma forma muito própria a isso. Ela busca compreender e dar sentidos a sua existência. Daí, o estudioso observar que a criança, mais que uma pintura ou escultura, cria uma parte de si mesma, um modo de interpretar e compreender o mundo. Assim, fazer arte não é um simples passatempo, é uma forma de comunicação consigo mesma, é importante para ela, para seus processos cognitivos, perceptuais, emocionais, sociais e para seu desenvolvimento criativo.

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Como na brincadeira de faz de conta, de que falamos em artigos anteriores, a criança, através de manifestações artísticas, pode expressar dúvidas, construir e reconstruir ideias que povoam seu imaginário, dando-lhes formas, cores, movimentos, brincando com possibilidades, buscando respostas para suas dúvidas. É um modo de vivenciar através de formas expressivas que não a verbal aquilo que percebe ou sente, uma vez que ainda não tem o domínio necessário das palavras.

Para que a expressão infantil seja estimulada, é importante que as atividades oferecidas sejam ricas e não castradoras como oferecer à criança folhas xerocadas com desenhos prontos, estipular o movimento exato, o que fazer com a argila ou a massinha de modelar, estipular as cores, fazê-la copiar do quadro de giz um determinado desenho sem permitir-lhe qualquer forma de variação. A pura imitação acaba por lhe podar os impulsos criativos, a autonomia e até a autoestima, pois se vê incapaz de se autoexpressar e fazer escolhas.

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As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, documento publicado em 2010, apresentam os princípios que devem nortear a primeira etapa da educação em todo o país. Nestes se incluem os princípios estéticos: “da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da liberdade de expressão nas diferentes manifestações artísticas e culturais”. O documento ainda enfatiza que devem ser observadas: “A educação em sua integralidade, entendendo o cuidado como algo indissociável ao processo educativo; A indivisibilidade das dimensões expressivo-motora, afetiva, cognitiva, linguística, ética, estética e sociocultural da criança”.

Causa-me muita estranheza não haver a valorização por parte de algumas escolas de Educação Infantil dos aspectos lúdico e artístico, corporal e afetivo, e que focam seus esforços no desenvolvimento cognitivo, uma vez que a legislação é muito clara. E não apenas a legislação, mas também toda a literatura pedagógica disponível aos profissionais da Educação.

As atividades artísticas desenvolvem aspectos importantes do ser como pessoa e como ser social como a intuição, a sensibilidade, a empatia (capacidade de compreensão e identificação com sentimentos do outro), a imaginação, a capacidade crítica e o pensamento divergente, que é a capacidade de pensar de forma original, de resolver algo de forma criativa, de encontrar soluções diferentes para um mesmo problema, tendo maior flexibilidade em lidar com situações.

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Também podemos citar a capacidade de simbolizar, analisar, julgar e avaliar; de melhor expressar ideias e emoções.

Duarte-Júnior enfatiza que o sensível não se limita à formação educacional escolar da criança e do jovem, mas que se prolonga pela vida dos indivíduos uma vez que estamos em aprendizado permanente. E como precisamos de arte e de sensibilidade, como precisamos de humanidade!

No próximo texto, vamos analisar algumas das formas artísticas para as crianças e como a arte contribui para sua educação emocional.

Até lá e grande abraço

As imagens são da web.