Muito mais que corpo: é corporeidade

Falar de corporeidade é trazer um novo olhar para o ser humano. É possibilitar que ele seja visto em sua totalidade. Qualquer assunto que trabalhemos em relação à criança exige que tenhamos esta compreensão. Mas, afinal, o que é corporeidade, este conceito que tem um significado tal que precisa ser discutido para que se entendam necessidades fundamentais da criança (e do adulto também)?

Corpo todos nós sabemos o que é, nossa estrutura que tem músculos, ossos, cartilagens, veias, artérias, que guarda os diversos órgãos, e muito mais. A fisiologia do movimento, a anatomia e a biologia são algumas das áreas que se dedicam ao estudo do corpo. Quem não se lembra das aulas de Ciências e Biologia que nos obrigavam a decorar muitos nomes que nos deixavam enlouquecidos nas vésperas das provas?Corporeidade é um conceito relativamente novo que foi trazido pelo filósofo francês Merleau-Ponty, no século passado. Este conceito começa a ganhar maior amplitude em outras áreas com os estudos que vários autores passam a desenvolver e difundir.  Somente no final do século XX e início do atual, ele chega às universidades brasileiras e aos cursos de Pedagogia e Educação Física com maior abrangência. E ele engloba não só o corpo e o movimento, ou seja, a motricidade, mas também a afetividade (que não tem necessariamente relação com afeto ou carinho, pois envolve a grande variedade de emoções, sentimentos e paixões que nos afetam). Envolve ainda a racionalidade e as relações estabelecidas pelo ser com seu meio sociocultural.  Quando se fala de uma educação integral ou da integralidade do ser, estamos falando de corporeidade.

Além das dimensões motora, afetiva, intelectual e social, a corporeidade inclui ainda a dimensão espiritual do ser humano. E é importante que abramos parêntesis aqui: é preciso entender que espiritualidade não tem nenhuma relação com religiões, embora, possamos dizer que, de modo geral, as religiões objetivam desenvolver o lado espiritual do ser. Quando se fala da dimensão espiritual da corporeidade, fala-se daquilo que vai além de necessidades materiais ou físicas, de necessidades mais profundas do ser humano que o ajudam a tornar-se uma pessoa melhor, como o cuidado com o outro, com seu meio e consigo mesmo, a solidariedade, o respeito, o compromisso e a amorosidade. Voltaremos a essa questão daqui a um tempo, uma vez que a falta desses atributos é um grande gerador do preconceito, do vandalismo, da violência, entre outros danos que as sociedades têm vivenciado.

A criança, que é nosso foco aqui (mas, também, pessoas de qualquer idade), para seu desenvolvimento equilibrado, precisa ser vista como alguém que pensa, sente, se movimenta e está vinculada a seu meio sociocultural. Infelizmente e com muita frequência, a educação cerceia o movimento e a expressão, como se estes atrapalhassem o desenvolvimento da criança. No entanto, o movimento é condição fundamental para a construção do seu conhecimento, para o processo de conhecimento de si mesma e de diferenciação do outro, enfim, de sua constituição como sujeito. Claro que não é admissível ou desejável que a criança não tenha limites. Não se pode deixar que ela suba na mesa, se pendure nas cortinas ou no ventilador (se a sala os tiver). Limites são necessários e as regras ou os famosos combinados são importantíssimos. Entretanto, mobilidade e inteligência são inseparáveis, pois é através do movimento que o pensamento se estrutura e que as emoções se organizam. Se observarmos uma criança que começa a descobrir o mundo por volta dos nove meses, podemos comprovar a importância de experimentar suas possibilidades, segurar tudo, experimentar formas diferentes de usar os objetos, de explorar tudo que é novo. Mais adiante, ela vai experimentar suas possibilidades de movimento, de ocupar espaços, de subir, de descer, enfim, ela vai, através da exploração pelo movimento, conhecer o seu entorno e seu próprio corpo. Observe, também, como a criança fala com o corpo inteiro quando expressa suas emoções, quando conta o que viu que a encantou, ou narra uma história que ouviu. Os gestos e os movimentos são complementos essenciais. “É muito grande” sempre vem acompanhado de mãos e braços que se abrem, o não quero, por braços que se cruzam na frente do corpo ou por um dar as costas, e, com certeza, você que lê o texto já se lembrou de muitos outros exemplos. E os gestos vão expressar também o que é culturalmente vivenciado por essa criança. E aqui já vale uma observação: se quando os responsáveis pela criança baterem nela quando sua atitude os desagradar, é claro que ela vai fazer isso com o coleguinha ou até com o professor que o deixar aborrecido. Maus hábitos são aprendidos, mas os bons também!!! O importante, especialmente para professores, é lembrar que nosso corpo expressa o que vivemos, e que não devemos julgar a criança como má por isso. Neste caso, castigos e “isolamento” não resolvem! Um bom papo, a atenção e carinho podem ajudar muito mais.

Grande abraço e até a próxma

http://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/view/9225
Author

Lucia Helena Pena Pereira é pedagoga e doutora em Educação. Atua com palestras e oficinas para professores da Educação Infantil, compartilhando a experiência adquirida em pesquisas e em sala de aula na Educação Básica e no Ensino Superior.